“Se há uma saída sustentável e que impacta menos o Planeta frente às mudanças radicais que estamos enfrentando do ponto de vista ambiental, essa saída é a agricultura familiar. Nesse sentido, o agronegócio é conservador, predatório, não resolvendo o problema da fome, porque virou commoditie, ou seja, produto de aposta em mercado futuro; em suma, é um dos elementos que está gerando a crise dos alimentos no mundo.” A opinião é da antropóloga Iara Pietricovsky de Oliveira, mestre em Ciência Política, pela Universidade de Brasília (UnB), e membro do Colegiado de Gestão do Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc) do Brasil, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.
Ao avaliar a Rodada Doha, Iara considera a proposta do acordo ruim para os trabalhadores brasileiros. Para ela, “os únicos beneficiários serão aqueles que já são beneficiários pelo sistema internacional de comércio, aqueles que estão atuando de forma predatória”. E dispara: “Foi um sucesso o fato de não ter havido acordo nessa Rodada”.
Confira a entrevista.
Por que se posicionar contra a Rodada Doha?
Porque a Rodada Doha deveria ter sido uma rodada de debates sobre o tema do desenvolvimento, ou seja, um encontro para equalizar e resolver o problema dos países que têm altos índices de pobreza e desigualdade. Estas questões deveriam ter sido consideradas para resolver, por meio do comércio, o tema do desenvolvimento. No entanto, ela tem sido uma rodada de negociações da União Européia, do Japão e dos Estados Unidos, no sentido de ganhar mercado e manter privilégios, em contrapartida à abertura total dos mercados dos países em desenvolvimento, sem garantias de que sejam realizadas políticas capazes de promover o desenvolvimento e resolvam os problemas da desigualdade. É por isso que olhamos criticamente a Rodada Doha.
Nesta reunião, o governo brasileiro, que se identifica com a esquerda, tratou de assuntos que envolviam principalmente os interesses do agronegócio brasileiro. Que caminho o Brasil está trilhando com sua política internacional?
Eu não classificaria o governo como de esquerda ou de direita, porque no jogo internacional existem interesses nacionais que estão sendo debatidos numa arena onde ninguém é generoso ou espera atitudes mais ou menos flexíveis da parte de ninguém. O que se espera é que se construam regras eqüitativas que mostrem que naquela arena multilateral os países tenham o mesmo poder de barganha ou aqueles que não têm sejam preservados ou salvaguardados desse desequilíbrio interno. A posição do governo brasileiro, nesse sentido, foi acertada, pois eles estavam querendo apostar numa instância multilateral maior, onde se pode exigir maior equilíbrio entre os diferentes países do que apostar em negociações bilaterais ou regionais e sub-regionais e onde o poder de barganha dos países em desenvolvimento é bem menor.
Nesse sentido, se olharmos do ponto de vista do marco dos interesses internacionais, das regras comerciais, do sistema capitalista internacional, o governo brasileiro está jogando corretamente. Não há nada de esquerda nisso. Vejo um olhar bastante pragmático em relação às negociações de comércio. O que há de abertura em relação ao desenvolvimento do Mercosul é a relação com os países da África, com a China e com a Índia. Essa é a novidade importante neste marco do comércio internacional e tem sido líder desse processo. O Brasil vem jogando, depois de muitas décadas, sem ter uma política externa definida, clara e transparente. Pelo menos, nosso governo tem uma política externa bastante clara. Mas é evidente que esse governo defende um interesse que não é do povo, mas sim do agrocomércio e da indústria, que não têm interesses de sustentabilidade ambiental, de geração de emprego, com respeito à dignidade de empregos no âmbito nacional. O cenário é bem complexo. O que fica evidente é que o governo brasileiro tenta se mover de forma mais coerente e explícita possível.
Iara, mas investir no agronegócio hoje não é um tanto retrógrado?
O agronegócio é um grande problema. Nós temos, no Brasil, duas grandes linhas de exploração rural: o agronegócio e a agricultura familiar. A segunda linha deveria ser muito mais valorizada pelo governo. É ela quem resolve o problema de emprego e alimentação do planeta inteiro. Essa é a defesa da China e da Índia e por isso essa Rodada não chegou aonde o Brasil queria. Se há uma saída sustentável e que impacta menos o Planeta frente às mudanças radicais que estamos enfrentando do ponto de vista ambiental, essa saída é a agricultura familiar. Nesse sentido, o agronegócio é conservador, predatório, não resolvendo o problema da fome porque virou commoditie, ou seja, produto de aposta em mercado futuro; em suma, é um dos elementos que está gerando a crise dos alimentos no mundo.
O que está em jogo em Doha é a continuação da divisão internacional do trabalho?
Também. Se pensarmos que a OMC (Organização Mundial de Comércio) hoje, do ponto de vista do mapa das instituições internacionais, é uma das mais importantes organizações, onde o poder está sendo efetivamente disputado no âmbito internacional, não podemos esquecer que a questão do trabalho está colocada dentro desta discussão. Tanto que sindicatos do mundo inteiro estão antenados, olhando para a Rodada Doha com uma atenção especial. No entanto, em Genebra, os grandes sindicatos e articulações sindicais européias, latino-americanas e africanas estavam acompanhando, pressionando seus governos, para que o acordo não fosse feito “a toque de caixa”, para que não se aceitasse qualquer coisa que viesse de parte da União Européia, Japão e Estados Unidos. E foi o que aconteceu.
Se olharmos Doha a partir dos interesses do povo brasileiro, as negociações resultaram num sucesso...
Eu defendo que é melhor não ter acordo do que ter um mau acordo. Como vimos, esse acordo é mau para os trabalhadores brasileiros. Os únicos beneficiários serão aqueles que já são beneficiários pelo sistema internacional de comércio, aqueles que estão atuando de forma predatória. Do meu ponto de vista, foi um sucesso o fato de não ter havido acordo nessa Rodada.
A China passa a assumir um papel de potência a partir das resoluções de Doha?
O importante agora, com a falência na conversação de Genebra, é que ficou evidente que o mapa do poder no da conversação em Genebra. Precisamos considerar que ainda há, nessa falência, um papel importamundo mudou definitivamente. A China e a Índia começaram a jogar o papel frente aos países e as corporações que vem defendendo seus interesses na OMC. Há agora novos atores políticos emergentes que estão disputando esse espaço de poder. A China tem papel fundamental nesse processo. Um bilhão e quase 400 milhões de pessoas num país alicerçado em uma forma política organizada e com capacidade técnica de se inserir no debate do comércio. E a Índia está no mesmo caminho. Foram esses dois países que produziram a falência da conversação em Genebra. Precisamos considerar que ainda há, nessa falência, um papel importante de países como Venezuela, Bolívia, Cuba e Nicarágua. Apesar de serem pequenos atores no comércio internacional, eles amplificam e ecoam a crítica.
A Rodada Doha mostrou que ainda há grande discrepância entre países desenvolvidos e em desenvolvimento?
Exatamente. Discrepâncias abissais e cada vez maiores, porque o poder já não é tão translúcido e explícito, exercitado pelos Estados Unidos e Europa. A Rodada do Uruguai [1] deixou clara a capacidade dos Estados Unidos e Europa se imporem diante do mundo. Agora não. O jogo está um pouco mais complexo. O xadrez agora não tem apenas dois níveis. Não é fácil colocar em harmonia, se é que é possível ter harmonia, ao tentar equalizar os interesses de 153 países que estão ligados à OMC.
A Rodada Doha ainda não acabou, só está em estado de espera...
Evidentemente que outras negociações irão acontecer paralelamente. Os debates continuarão e ninguém vai levantar o dedo para propor a falência total da Rodada Doha, lamentavelmente. Então, o que deve acontecer é que, em setembro, os países voltam a se encontrar e organizar as agendas de forma extensiva, porque vamos ter eleições nos Estados Unidos. Se Obama [2] ganhar, teremos uma mudança substancial na posição estadunidense dentro da OMC e só vão conseguir reativar os processos e articular todas as dificuldades que ficaram penduradas agora em Genebra a partir do ano que vem. Ou seja, temos um ou dois anos seguramente de conversação, porque também é imprescindível ter uma instância multilateral que regule e organize o comércio internacional. Do contrário, entraremos numa barbárie.
Notas:
[1] A Rodada do Uruguai foi iniciada em setembro de 1986 e durou até abril de 1994. Baseada no encontro ministerial de Genebra do GATT (1982), foi lançada em Punta del Este, no Uruguai, seguido por negociações em Montreal, Genebra, Bruxelas, Washington e Tóquio. A rodada transformou o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (conhecido como GATT) na Organização Mundial do Comércio (OMC). Uma das principais metas da Rodada do Uruguai foi a de reduzir os subsídios agrícolas. Houve muita discordância entre União Européia e Estados Unidos, que foi apoiado pelo Grupo de Cairns, composto por catorze países. Entre eles estavam Argentina, Austrália e Brasil.
domingo, 24 de agosto de 2008
Doha e o agronegócio
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